Peixinhos fritos
Por Gleidson Melo
Naquele lugar especial, ouvi muitas histórias, dentre elas, o relato de dona Rosália, uma das visitantes que acabara de conhecer. Ao resgatar sua trajetória de vida, trouxe as recordações do passado.
Meu nome é Rosália, tenho setenta e seis anos, morava num mucambo feito de pedaços de pau cruzados e recheados com barro. Era uma casa pequena com dois quartos, sala e cozinha no mesmo lugar, piso batido de terra vermelha, com um banheiro pro lado de fora da moradia. Assim eram as casas da minha rua.
Eu, minha mãe Glória e as irmãs, Celeste, Vitória e Florinda, sobrevivemos diante de situações de dificuldades. Leite não existia, e quando acabava a farinha com sal, íamos apanhar frutinhas vermelhas no mato para saciarmos a fome. Sempre na época das frutas, comíamos carambolas e catávamos mangas.
Pescar no açude e depois comer cambimbas fritas, uns peixinhos miúdos, também era uma farra. Naquela época, quando a crise já estava instalada no país, e o homem saía do campo para morar na cidade, até o sal era difícil de se ter em casa. Quando a fome apertava, às escondidas, farinha de mandioca seca com água solucionava o problema, porque tudo era racionado, e mamãe não podia saber que éramos trelosos.
Aos oito anos, era a primeira das irmãs a conseguir um emprego em casa de família. Logo, comprei uma panela de barro para a minha mãe. Um ano mais tarde, Celeste, Vitória e Florinda foram labutar e seguiram o mesmo destino, o de trabalhar em casas de famílias.
Aos poucos, fomos erguendo o nosso lar. Todo mundo admirava o esforço de cada uma de nós. Éramos fortes e não desistíamos diante das dificuldades.
Felizes, passamos a comer bacalhau. O peixe não era tão salgado como os de hoje, mas, era uma delícia. A charque, quando possível, era servida como uma saborosa refeição com farofa e café. O alimento, em geral, era pobre em nutrientes e deixava a nossa pele bem amarelada.
Mamãe não ficava parada e sempre lavava roupas pra fora. Lavava e passava em ferro aquecido a carvão. Ainda lembro do cheiro da fumaça que invadia o ambiente e deixava tudo num clima majestoso, próprio da infância. Até posso imaginar o sentir do calor e ouvir o estalido do carvão no ferro à lenha.
Vivendo em um período de complicações políticas, nem todo mundo podia sair de suas casas. A Liga Contra Mocambos, assim chamada por mamãe, derrubava qualquer casa que fosse irregular. Com o tempo, essas moradias foram se consolidando cada vez mais, formaram favelas e locais de difíceis acessos, com escadarias e degraus bem altos. Os casebres eram construídos clandestinamente, e o dinheiro, insuficiente, não dava para comprar cercas, o que, de fato, caracterizava invasões de terrenos do Estado. Então, a família tomou posse de um espaço muito pequeno que lhe serviu de moradia.
Perto da casa morava um casal de vizinhos, a dona Alzira e seu Moacir. A mulher não era uma pessoa muito boa o quanto parecia ser. Antes de conseguirmos empregos, quando visitava a nossa casa, esnobava.
– Hoje eu comi muito feijão com charque e farinha.
– O almoço estava uma delícia!
– Tem muita gente por aqui com fome, não é mesmo, cumade Glória?
– Oxente, cumade! Por aqui ninguém passa fome.
– Visse, Rosália?
– Sim, mamãe, não estamos com fome – respondi com ar de tristeza no coração, porque a nossa mãe nos orientava a dizer que estávamos bem alimentadas, mesmo que os nossos estômagos estivessem colados nas costelas.
Tudo isso para que a vizinha não soubesse da situação na qual vivíamos. Em verdade, o que a dona Alzira fazia conosco não era de brincadeira.
Certo dia, tudo foi por água abaixo, quando o esposo abandonou o lar, porque não suportava os caprichos da mulher. Dona Alzira teve que tocar a vida sozinha.
À penúria a coitadinha foi esmorecendo até sucumbir. Como não bastasse, os donos da moradia chegaram e tomaram conta do lar. Expulsaram dona Alzira, porque não conseguia pagar o aluguel. Ela partiu sem o direito de levar todos os seus pertences, ao menos uma trouxa de roupas.
Certo dia, a mulher apareceu com um saco nas costas.
– Cumade, eu vim aqui e estou passando tanta fome.
– Quem eu era, matava a tua fome e das meninas, não é mesmo, cumade?
– Veja só em que estado fiquei, estou com tanta fome.
– Não fique triste, cumade Alzira.
Então, mamãe colocou em sua sacola um pouco do que tinha: café, sal, charque, bacalhau, açúcar e farinha.
– Cumade, se eu não morrer de fome, um dia apareço novamente.
– Vai com Deus, Alzira!
– Agradeço pelo alimento! Nunca vai faltar comida na sua mesa, cumade Glória.
A mulher partiu e nunca mais retornou.